Paleogeografia e Paleoecologia do Cenomaniano do Baixo Mondego

 
 

    Depois do processo de rifting intracontinental do final do Triásico, formou-se na orla ocidental do nosso território uma bacia com uma espessa série sedimentar. A Bacia Lusitaniana teve quatro fases de rifting com intervalos de subsidência. A seguir ao Aptiano existiu um longo intervalo de detumescência térmica que resultou na deposição de caráter transgressivo, desde o Albiano ao Turoniano, da chamada Plataforma Carbonatada Ocidental Portuguesa. No setor norte a transgressão marca presença a partir de Cenomaniano médio com sedimentação carbonatada e carbonato-siliclástica que atingiu as proximidades de Coimbra. Este episódio sedimentar demonstra um enriquecimento gradual em carbonatos, em ambientes neríticos, colonizados por biostromas de Gyrostrea ouremensis em paleocomunidades que incluíam Anisocardia orientalis e Harpagodes incertus (Callapez, 2008).

    Com o início do Cenomaniano superior assiste-se a um aumento generalizado da profundidades, em linha com a subida eustática que afetou as margens europeia e norte-africana do Tétis, culminando com a deposição de uma da plataforma carbonatada e uma retração para este da planície aluvial na região do Baixo Mondego, fazendo com que esta plataforma interna se tenha estendido até às proximidades do meridiano de Coimbra. Os níveis C e D são testemunho destes acontecimentos interpretados como resultantes de fundos costeiros, de substratos macios, oxigenados e com acentuada sedimentação carbonatada. Segundo Callapez (2008), as paleocomunidades bentónicas eram ricas e diversificadas, com abundância organismos epifaunais como Pycnodonte vesiculare, Rhynchostreon columbum, Ceratostreon flabellatum, Neithea hispanica, Neithea dutrugei, Plicatula auressensis, Harpagodes incertus, Cimolithium tenouklense, Drepanocheilus olisiponensis; semi-infaunais como Pinna sp. e organismos infaunais, como era o caso dos equinóides do género Mecaster. A fauna nectónica incluía Neolobites vibrayeanus e Lessoniceras mermeti (Callapez, 2008).

     A microfauna de foraminíferos, estudada em lâmina delgada, proveniente de amostragem dos níveis C e D, representam a maior biodiversidade destes microfósseis na sucessão cenomaniana-turoniana do Baixo Mondego. A associação faunística identificada representa um domínio correspondente a uma rampa carbonatada, em ambientes com águas pouco profunda ou ligeiramente mais profundas. Estas conclusões indicam que estes níveis correspondem ao máximo de inundação do setor norte da Plataforma Carbonatada Ocidental Portuguesa (Hart et al., 2005).

    Na parte média do Cenomaniano superior, representado pelos níveis E, F e G, o setor da plataforma, aflorante no Baixo Mondego, corresponde a um ambiente sedimentar sob influência oceânica, mas afectado por um afluxo importante de sedimentação siliclástica proveniente dos sistemas fluviais presentes na região. Aliás, este terá sido um fator limitante ao aparecimento de comunidades recifais, com corais hermatípicos ou com Caprinula boissyi, como as que se instalaram na zona central da plataforma (Callapez, 2008). Assim, de oeste para este, verifica-se a existência de um domínio de natureza subtidal, com fundos carbonato-argilosos, onde se instalaram corais ahermatípicos, equinoides infaunais e gastrópodes. Seguiam-se águas pouco profundas, com substrato favorável a comunidades bentónicas, onde abundavam Rhynchostreon columbum, Ceratostreon flabellatum, Neithea hispanica, Tylostoma ovatum, T. torrubiae e Mecaster scutiger, a fauna nectónica está largamente representada pelos vascoceratídeos tetianos. Nas zonas mais internas a paleogeografia contempla quatro domínios contíguos com um decréscimo de biodiversidade para este (Callapez, 2008).

    Durante o Cenomaniano terminal, representado pelos níveis H, I e J, a Plataforma Carbonatada Ocidental Portuguesa foi afetada por importantes alterações de caráter tectónico que implicaram o levantamento gradual, e consequente emersão, dos setores sul e central. Enquanto isso, a norte, continuou uma sedimentação carbonatada de águas mais profundas. Esta tipologia sedimentar iria diminuir e daria origem a uma sedimentação de caráter mais argiloso, que se expressa no nível I da sucessão. Este nível representa fundos sublitorais lodosos com paleocomunidades onde abundavam pequenos Mecaster scutiger e tilostomídeos (Callapez, 2008).

    Com o nível J testemunhamos o regresso de uma sedimentação mais carbonatada, com fundos macios, favoráveis a paleocomunidades onde tinham prevalência organismos bentónicos representados pelos géneros Trigonarca, Callucina, Pycnodonte, enquanto que o género Vascoceras constituía o grupo de organismos nectónicos mais representado.

    Esta transição cenomaniano-turoniana é contemporânea do Evento Bonarelli (OAE 2). A ocorrência simultânea de abundantes calciesferas e do foramínifero planctónico Helvetoglobotruncana praehelvetica, acima dos níveis que testemunham a extinção da fauna tipicamente cenomaniana, são indicativas da presença do evento de extinção do final do Cenomaniano (Hart, 1991; Hart et al., 2005). Esta terá sido uma importante crise biótica, na história do Cretácico, embora não se trate de um dos grandes eventos de extinção, já que o registo de extinção é fundamentalmente ao nível da espécie e não ao nível de categorias taxonómicas superiores (Raup & Sepkoski, 1982).

 

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